Vamos Voar
Tabatinga, no estado do Amazonas, fica na fronteira com o Peru e a Colômbia, um pouco mais de 2h de avião saindo de Manaus. Era lá que eu estava em abril de 1991 participando da OCAS – Operação Anticólera do Alto Solimões. De Tabatinga saiu um barco para Manaus e nos seus cinco dias de viagem, um passageiro passou mal, sendo diagnosticado cólera ao fim da viagem. Foi o primeiro caso de cólera no país, amplamente divulgado na imprensa nacional e internacional.
Fiquei responsável pela vigilância epidemiológica. Procurei a Capitania dos Portos em busca de toda a lista de passageiro e o nome das comunidades ribeirinhas em que o barco atracou, os rastreando, em busca ativa, pudéssemos identificar, o mais precoce possível, novos doentes.
O Militar da Marinha que me atendeu coçou a cabeça, franziu a testa, como quem diz, “esse cara tá na Amazônia...”. Saí de lá como entrei; não havia lista nenhuma.
Alguns dias depois, fui notificado por pesquisadores que uma criança indígena havia morrido em uma das tribos do povo Ticuna. Acionei a equipe, um médico Tenente militar, e dois técnicos da antiga Fundação Nacional de Saúde. Com o piloto, que estava à nossa disposição, programamos a viagem de 2 h de duração, para o dia seguinte. Apreensivo. Pensa em viajar de helicóptero sobre a floresta amazônica!
O piloto localizou a tribo visualmente e descemos. Erramos. Era outra tribo. Mas acertamos; encontramos um técnico indigenista da FUNAI, que nos acompanhou até a tribo certa.
Descemos. Um alvoroço. Eles estavam há dias de barco da comunidade mais próxima. Bastante isolados. Não falavam nossa língua; tinham língua própria, cultura própria, e, recentemente, perdido uma criança de um ano de idade, com diarreia. Sintoma básico de cólera.
Inexperiente, mas preocupado em cadastrar os contactantes – se lembra do caso do barco? -, chamei os pais, perguntei seus nomes. Não tinham nomes. Não contavam as horas. Pelo menos como o fazemos. Mas sofriam, como nós sofremos.
É preciso exumar o corpo e colher material para exame diagnóstico, pensei. Mas como falar isso? Como os pais iriam interpretar minha iniciativa? Transmiti ao técnico da FUNAI, que traduziu minha necessidade e minha preocupação, com o que os pais concordaram plenamente. Diminuiu minha preocupação? Tenso, caminhamos floresta adentro por mais ou menos 30 min; colhemos o material; retornamos para a nossa base em Tabatinga. Resultado do exame, ascaridíase - verminose.
Naquela ocasião, encontrei sinais da presença de organização religiosa, e de atividade extrativista na tribo.
Estávamos longe daquela cultura, e continuamos.
Essa semana teve jogo no estádio do Santos, na Vila Belmiro. Água Santa contra Bragantino. Times sem torcida. O helicóptero da polícia militar sobrevoava baixo com um potente foco de luz direcionado para as ruas. Como eu, na Amazônia, procuravam em lugar errado, de modo errado.
Continuamos voando, sem rumo, sem objetivo, sem planejamento. Somos um país rico em recurso. Ou burros!