Os livros voam
Marcio Aurelio Soares
Ler é viajar sem sair do lugar. É atravessar fronteiras de tempo, espaço e identidade apenas ao virar uma página. Saimos do Rio de Janeiro e aterrissarmos na Catalunha do início do século XX. De Lima Barreto a Mercè Rodoreda. Do idealismo trágico de Policarpo Quaresma, durante a Primeira República Brasileira, ao silêncio oprimido de Colometa, mulher que, em meio à Guerra Civil Espanhola, tenta resgatar sua voz e dar forma à própria identidade.
A leitura é esse voo que dispensa passaporte, mas não nos deixa incólumes. Cada livro aberto nos arremessa para dentro de outra vida — e, ao sairmos dela, carregamos fragmentos que iluminam a nossa.
Viajamos com Policarpo, funcionário público ingênuo, que acredita com fervor na grandeza do Brasil. Patriota sincero, acaba punido por denunciar as injustiças de um país que, por fim, o rotula como traidor — quando os verdadeiros traidores são os donos do poder: elites conservadoras, corruptos, oportunistas.
Em outro tempo e espaço, caminhamos com Colometa, jovem órfã, aprisionada em uma família machista, casada com um homem que a domina e a silencia. Ela vive o peso da submissão, mas encontra, ao final, um raro vislumbre de sentido — não grandioso, mas vital.
A literatura nos oferece essas travessias. Nos desloca, nos desconcerta. Testa nossa sensibilidade, desafia nossas certezas, amplia o campo do possível. Entre a ingenuidade de um homem e a resiliência de uma mulher, emerge uma potência transformadora: a palavra como ferramenta de justiça simbólica.
Isso não significa que a literatura precisa ser panfletária ou militante. Mas, ao expor contradições, ela nos obriga a pensar, a refletir sobre o mundo — e sobre nós mesmos. O leitor atento, tocado pela palavra, não sai ileso. Cada narrativa é um convite à escuta e à empatia. Ao mergulhar em outras vidas, revisitamos a nossa. Ao percorrer realidades distantes, iluminamos a que nos cerca. Ao testemunhar o drama alheio, ampliamos nossa percepção do possível.
Por isso, ler é mais do que um ato de passatempo. Ao se entregar a uma história, o leitor não apenas observa: ele age, interfere, se reposiciona. A literatura não nos dá respostas prontas, mas nos ensina a fazer perguntas melhores. Basta comer as páginas com fome, ouvir os personagens com empatia e, acima de tudo, permitir-se fazer parte daquilo que se lê.
E isso, em tempo de muitos ruídos, já é muito.