Não é economia, estúpido. É pertencimento!
Marcio Aurelio Soares
Atravessei a rua com a intenção de comprar um medicamento de uso contínuo na drogaria. Logo à entrada, tive a impressão de ter me enganado e entrado em um mercado em dia de promoção. As pessoas se amontoavam em frente às prateleiras e ao balcão. Procurei o atendimento preferencial e, para minha surpresa, essa fila estava maior que as demais. Eu só queria comprar uma caixinha de um medicamento muito simples e usual.
“Senhora, seu CPF. Confirma seus dados cadastrais? Vejo que temos convênio com seu plano de saúde. A senhora tem a intenção de usá-lo para receber o desconto da promoção?”, dizia a atendente. Ao lado, um senhor debatia sobre a importância do uso contínuo de Ômega com sua esposa, que perguntava sobre a diferença em relação ao Ômega Plus. “O Plus é mais concentrado”, respondeu prontamente a atendente, com ar de quem tinha total controle da situação. Aproveitando a oportunidade, ofereceu ao casal, preocupado com sua saúde, a vitamina C, que, na promoção, poderia ser comprada em três caixas, pagando apenas por duas. A senhora, dirigindo-se ao marido: “Olha bem, que maravilha. Vamos querer sim”.
Àquela altura, eu já acumulava 20 minutos de pé na fila preferencial, que só aumentava junto com minha ansiedade. As pessoas, cada vez mais, se aglomeravam no salão e à frente das prateleiras. Observei de soslaio um mar de cabeças brancas, bengalas e andadores. Até que surgiu uma funcionária que me pareceu ser a gerente. “Gente, por favor, tenham calma, tem produtos para todos”. Dirigindo-se à senhora da bengala, disse: “Senhora, acalme-se, por favor”, diante da ameaça de levar uma bengalada, tal era a ira da cliente.
Não demorou muito, ouvi sirenes de polícia e, quando dei por mim, homens fardados e ameaçadores impunham a necessidade de respeito às filas. “Capitão, não dá, são muitos os velhinhos e eles estão agressivos. Só chamando a cavalaria”, que não tardou em chegar. Pocotó, pocotó, pocotó... “Não me empurre”, disse o primeiro que acabara de chegar. “Respeite a minha idade”, disse a senhora do andador. “Eu estava na frente dela, eu vi a promoção primeiro”, “ah, essas duas caixas são minhas, pode ir tirando a mão”.
“Senhor, senhor. É a sua vez”. Pisquei os olhos, percebi que a atendente falava comigo. Ah, sim. Obrigado, disse. Fiz o pedido e, imediatamente, foi-me solicitado o CPF, confirmados meus dados cadastrais, informado meu plano de saúde, o programa de benefícios do meu banco e a pergunta fatídica: “O senhor quer participar do plano de fidelidade da loja? Comprando três caixas, o senhor paga somente duas, e com um grande desconto: ao invés de 79,70 reais, o senhor vai pagar somente 21,39 reais”. Mas que mágica é essa, me perguntei, ao mesmo tempo em que não encontrava alternativas quanto à resposta. Processada a compra, com três caixinhas de remédio na cestinha, dirigi-me ao caixa. Comigo, alegres, senhoras e senhores de cabelos brancos, tal qual Chapeuzinho Vermelho, todos faceiros, como se estivessem no bosque, encontrando amigos, certos de que suas compras os levariam a encontrar a felicidade e a vida eterna.
Na saída, me senti aliviado, mas também um pouco angustiado. Onde estão os policiais? E a gerente nervosa? Foi tudo delírio de fila. E no mais, as compras poderiam ser parceladas em até 12 vezes e sem juros!
06 de dezembro de 2024
*Médico