Monteiro Lobato: qual deles?
* Flávio Viegas Amoreira
É com pesar intelectual e emotivo que escrevo esse artigo a partir de polêmicas que ganham corpo em todo mundo literário brasileiro.
Como a maior parte dos leitores brasileiros, cresci tendo Monteiro Lobato como primeiro incentivador ao hábito que nunca mais me largaria e seria mesmo essência da minha vida: quando não durmo (e pouco) estou lendo ou escrevendo.
´´História do mundo para crianças´´ e ´´Geografia de Dona Benta´´ foram primeiros companheiros nessa jornada: na adolescência chegaram-me Wilde, Nietzsche, Kafka e Gide; autores que espelhavam muito o que sou, sinto e penso ainda que não tivesse maturidade suficiente para a dimensão de suas influências.
Tinham que ser, nos escolhemos. Mas a voracidade nasceu com Lobato na infância, o que proporcionou já tivesse ânimo cognitivo para viajar pelas páginas dos outros. Era a receptividade de Lobato, sua destreza em captar curiosidade voraz, toda plasticidade mental e aconchego proporcionado por seu universo lúdico adaptando os temas e autores clássicos ao seu jeito brasileiríssimo.
Ouvira rumores sobre suposto comportamento racista do escritor no tratamento do personagem Dona Benta, depois em contos. Sempre ouvi argumentos da importância de levar em conta contexto da época ainda flagrantemente ´escravocrata´ e não esquecer ambiente positivista, teorias eugenistas em voga, todo arcabouço ´pseudo-científico´ de pensadores do século XIX.
Era o tempo, eram as circunstâncias, até Freud incorreu em colocações que não estavam atrás das advogadas por Lobato. Depois vieram cartas do escritor revelando explicitamente opiniões inadmissíveis ainda que privadamente. Por benevolência poderia usar termos em voga: ´´lacração´´ ou ´´ cancelamento´´, aliás chulos e reducionistas.
Primeiro existem variadas maneiras de avaliar uma obra: não vou discorrer sobre as grandes correntes da teoria literária: o impressionismo, historicismo ou estruturalista. A obra de Lobato na sua maior parte é um patrimônio de brasilidade e riqueza fabular. Sua luta pela modernização do mercado editorial brasileiro foi heroica: ninguém vendeu e defendeu mais leitura e educação quanto ele. Foi o amigo fiel de Lima Barreto em seu ocaso. Sua luta pioneira pelo petróleo nacional foi a de um mártir e seu nome figura entre gênios da literatura infanto-juvenil.
Seu homólogo norte-americano Mark Twain passou pelo mesmo ´revisionismo´, mas segue um ícone. São inúmeros casos de ´desencanto ´ na literatura e história: o fascismo de Ezra Pound, o cripto-nazismo de Heidegger, o integralismo juvenil de Dom Helder Câmara e Alceu Amoroso Lima são exemplos de mau-comportamento de mestres. A mim, pessoalmente, desagrada reler Graciliano Ramos sabendo-o homofóbico ou Rubem Fonseca colaboracionista do golpe de 1964, mas são fundamentais e não posso me privar enquanto literato.
Tenho lido comoventes depoimentos de educadoras defendendo legado literário de Lobato sem relativizar seu comportamento nas primeiras obras. Que essa obra passe por um ´´aggiornamento´, uma adequação à necessidade de não concessão a qualquer traço de preconceito. O racismo me soa tão irracional que dói notarmos algum laivo nele em quem admiramos pelo intelecto principalmente. Lobato tinha carinho especial por Santos e por este jornal onde colaborou por décadas. Releia-o contextualizando.
* Flávio Viegas Amoreira é escritor, poeta, contista, romancista, dramaturgo e jornalista. Nascido em Santos, em 1965, atua como agitador cultural em São Paulo, Rio de Janeiro e Litoral Paulista, em projetos de discussão de temas ligados a artes de vanguarda, saraus poéticos e oficinas de criação literária. Já lançou 14 livros.