Minha Mercedes Preta
Por Marcio Aurelio Soares
Como de costume, planejaram a viagem com seis meses de antecedência. Eram três casais e, mais que natural, e necessário, promoveram diversas reuniões. Primeiro, discutiram, por aplicativo de mensagem, a data da reunião e o local - na casa de quem, o horário, o que cada um levaria - queijos e vinhos não faltavam. E não era pouco. Depois de três garrafas de vinho e horas de intenso debate, concluíram que seriam necessárias novas reuniões para detalhar o roteiro.
Desembarcariam em Lisboa, onde ficariam alguns dias explorando a cidade, e depois partiriam com destino ao Porto. A grande dúvida, que consumiu boas garrafas de vinho, era: fariam o trajeto pelo litoral ou pela Serra da Estrela? Os que defendiam a viagem pelo litoral argumentavam que as temperaturas mais altas no mês de setembro os favoreciam por desobriga-los de quilos há mais de bagagem com casacos. Por outro lado, os que preferiam a viagem pelo interior, tinham como forte argumento justamente o calor, o que permitiria conhecer uma região tipicamente fria, com temperaturas mais amenas.
Por fim, votaram: empate. Um casal rachou. “Vai ter divórcio”, pensou a alcoviteira que fazia lobby pela rota litorânea. Encerrada a reunião, o casal saiu de bico um com outro e, como era de se esperar, resolveram a questão no calor de suas paixões noturnas. Tanto assim que, na reunião seguinte, não se perceberam ecos da semana anterior. O litoral venceu. Pois bem, pá: lá foram.
Àquela época, ainda engatinhando na arte de descobrir o mundo, cada um viajava com uma mala de vinte e três quilos. Algo impensável hoje, não só pelo custo adicional das bagagens, como pela facilidade em encontrar uma lavanderia expressa mundo afora. Com tanta bagagem, a única opção era alugar um carro. E não seria uma Brasília amarela, embora o espírito fosse semelhante.
Depois de incontáveis reuniões marcadas por vinho, queijo e bacalhau - já sentiam quase portugueses! - finalmente bateram o martelo: a Mercedes Sprinter preta era a solução ideal. Espaçosa o suficiente para acomodar confortavelmente tanto o grupo quanto as malas - todas elas.
Com “Mamonas Assassinas” tocando no último volume e a Mercedes na estrada, partiram rumo o litoral português. A primeira parada, rápida, como o combinado, seria na famosa “Boca do Inferno” em Cascais. O que foi um inferno.
O lugar, lindo. Um mar esplendoroso esmagando-se contra as rochas, um verdadeiro cenário de filme. Não fosse pelo o que acontecia enquanto registravam tudo, com suas retinas e máquinas fotográficas. Sim, já eram tempos de máquinas digitais, por certo.
Mas os instantes seguintes não seriam captados digitalmente, apenas pelo córtex cerebral. Foram roubados. Furtados. E “pelos ciganos”, diria depois o policial do alto de seu preconceito. Por ironia do destino - ou sorte para alguns, azar para outros - os ladrões deviam estar num carro compacto: só conseguiram levar três das seis malas, além dos euros, cujos donos só não ficaram como vieram ao mundo porque estavam de camiseta e bermudas.
O primeiro impulso dos lesados foi querer abortar a viagem e antecipar a volta. Feito os boletins de ocorrência, com uma dinâmica policial tal qual a das terras tupiniquins, decidiram que qualquer medida drástica deveria esperar pelo dia seguinte: dormir, respirar fundo e tentar, com o mínimo de dignidade, seguir a viagem com metade das roupas, mas com o dobro de histórias.
O debate foi intenso. Voltariam? não voltariam? Prosseguiriam? Ou abandonariam tudo ali mesmo? Das três malas roubadas, duas pertenciam ao mesmo casal – que, entre prantos e crise de desespero, jurou pegar o primeiro voo de volta. A ironia era cruel: como brasileiros, que se sentiam tão seguros na Europa, agora eram reféns da mesma vulnerabilidade que tentavam deixar para trás. A impotência tinha gosto amargo, mais forte que qualquer vinho do Porto.
Foi com a ajuda dos vinhos e o acolhimento do grupo, que, aos poucos, foram se adaptando à nova realidade: menos dinheiro, mais história pra contar.
Muito mais histórias. E as contariam muitas vezes e por muitos anos.
Mas o ápice foi se darem conta que, um dos amigos estava sem passaporte e fariam escala em Marrocos no voo de volta. Um último golpe do imponderável, um epílogo que nem o mais criativo dos roteiristas ousaria escrever.
Você consegue imaginar?