ENTRELIVROS
ENTRELIVROS
Marcio Aurelio Soares
Com pai servidor público de nível médio, a casa não transpirava cultura no sentido estrito, mas o valor de garantir que os filhos tivessem acesso aos livros era prioridade.
A casa suburbana tinha sala, dois quartos, varanda e um pequeno quintal com garagem para um carro. As estantes da sala ocupavam duas paredes. De um lado, a coleção “Tesouros da Juventude”, em edição de luxo de 1958, com 18 volumes voltados ao público infantojuvenil, em capa dura e letras douradas. Com mais de 6.000 páginas, abrangia ciências, geografia, história, literatura e curiosidades, ideal para pesquisas escolares. Ao lado, a imponente “Delta Larousse”, com 15 volumes editados em 1960, cativava pelos detalhes e inúmeras fotos ilustrativas.
Nos anos 1960, vendedores batiam à porta oferecendo enciclopédias e revistas. A “Seleções do Reader’s Digest” era a preferida, aguardada ansiosamente por todos, com reportagens sobre saúde, atualidades, humor e resumo do livro do mês. A seção “Rir é o melhor remédio”, repleta de piadas típicas dos EUA, era a mais apreciada, embora muitas piadas ficassem perdidas na tradução. É uma pena que a gente se pergunte hoje: onde será que foram parar? Naquela época, reciclagem sequer era uma ideia.
Outra parte da estante abrigava as “Obras Completas de Monteiro Lobato”, reunindo toda a produção infantojuvenil e adulta do autor. O 'Sítio do Picapau Amarelo', com Narizinho, Pedrinho, Emília e outros personagens, marcou várias gerações, ganhando ainda mais vida após as adaptações para a televisão, primeiramente nos anos 1950 e, por uma década, na TV Globo.
Se os livros de Lobato alimentavam a imaginação, os jornais traziam o mundo real para a mesa da sala. Aos domingos, quando não havia edição — o que só mudou após a década de 1970 —, as manhãs eram dedicadas a recortar as principais matérias da semana para ler e debater em família, especialmente aquelas sobre medicina e saúde. Talvez isso tenha moldado a escolha profissional de um dos filhos, direcionando-o para as ciências da saúde. Durante décadas, acumularam-se centenas, talvez milhares de recortes, guardados em caixas amarelas da Kodak. Essas embalagens tornaram-se tão emblemáticas que o amarelo se transformou em sinônimo de fotografia por gerações.
Nunca se soube de onde vieram tantas caixas, mas elas resistiram por anos no fundo do armário, testemunhas silenciosas de uma época em que o saber se colecionava com as mãos. Até que, no dia da formatura, foram embrulhadas como presente, um legado de carinho e conhecimento.