Hip Hop: Cultura, Movimento ou Game?
*DJ Cuco
Cultura é uma palavra polissêmica que pode significar cultivo, acúmulo de saberes ou conjunto de costumes de um povo. Já Movimento, tem como uma de suas definições no dicionário “Ação de um grupo de pessoas que se une com o mesmo propósito”. Game, em tradução literal significa jogo, mas na boca dos rappers gringos é mais uma gíria para Industry, que traduzo livremente como Mercado.
Derek, Jé Santiago e Dfideliz, integrantes da Recayd Mob, irritaram boa parte das gerações mais antigas do Rap Nacional recentemente. Em um vídeo, eles afirmam que com quatro anos de carreira já estão ricos enquanto “tem cara com trinta anos de carreira que ainda tá duro” e “tem cara com nove anos de carreira fazendo Kwai”. Maurício DTS foi o primeiro a se manifestar em vídeo e foi seguido por Ferréz e Mano Reco, além de receber apoio de outros nomes como MV Bill e Dexter.
O que mais me deixou indignado foi ver estampado em artistas que têm seu sucesso num subgênero do RAP, um individualismo exacerbado que impede o cidadão médio de se solidarizar com a dor dos outros. Como se não importasse que o Brasil tem 14 milhões de desempregados, 6 milhões de desalentados e praticamente metade da sua população sem saber se vai conseguir comer uma refeição por dia (insegurança alimentar). Como se não importasse que temos um governo genocida que, por sua inércia, corrupção e incompetência, deixou morrer quase 600 mil brasileiros por conta da pandemia.
O que a Cultura ou Movimento Hip Hop me deu de mais precioso desde o início dos anos 90 foi o sentimento de pertencimento, uma identidade no mundo. Eu me reconhecia nas pessoas que encontrava nas reuniões do Movimento Hip Hop Organizado da Baixada Santista, nos Bailes Black, nos Shows de RAP, nos eventos beneficentes que realizávamos. Toda uma gama de informações que era absorvida através das letras que escutávamos e das vivências em coletivo, fazia a gente se sentir caminhando na mesma direção, com o objetivo de transformar a realidade de quem mais precisava. A postura era essa: olhar para aqueles que mais ninguém tava olhando, e dar visibilidade através da nossa arte para essas histórias.
Infelizmente e em certo ponto, isso se perdeu quando alguns deixaram de chamar de Movimento pra chamar de “Game”. Ocorreu uma profissionalização no meio, o que é bom, porém, levou alguns a atenderem demandas de Mercado (ou Game?), desenvolverem produtos culturais, ressoando um imaginário já estabelecido de modo a conquistar mais público. É preciso deixar claro que o Movimento e a Cultura Hip Hop seguem vivos, porém, sem tantos seguidores, na pessoa de cada artista, arte-educador, agitador cultural que compreende o dinheiro como um meio pra se alcançar um fim. Ao se gabar que já estão ricos, os meninos da Recayd deixam claro que esse era o objetivo, a arte é só um meio. Pra mim é o contrário. Deve ser por isso que ainda estou duro, mantendo viva a essência do Movimento e da Cultura.
*DJ Cuco é rapper, produtor musical, agitador cultural, gestor de projetos culturais e formado em Gestão Pública. Atua há mais de 20 anos na cena da cultura urbana e periférica da Baixada Santista. É proprietário do Estúdio Bom Bando.
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