Considerando o colapso da antiguidade e o pânico bancário - Parte 2
Michael Hudson [*]
entrevistado por Danny Haiphong
DH: Estes são todos excelentes pontos, e penso que talvez seja apropriado passar agora para este grande artigo num discurso de Sergey Lavrov na semana passada para a revista russa Razvedchik ("Intelligence Officer"). Ele considera a multipolaridade uma tendência emergente, e parece que o Sul Global – sendo a Rússia um dos principais países – está a afastar-se deste tipo de financeirização neoliberal.
Michael, falaste de uma dívida média de 10.000 dólares nos Estados Unidos – cerca de metade do país ganha 30.000 dólares por ano. Portanto, quando se fala de uma dívida média assim tão alta, fala-se de pessoas realmente abaixo da linha de água. Mas falemos do que Sergey Lavrov disse. Porque é que é importante em relação ao que se passa hoje em dia? Porque temos muitos desenvolvimentos que acabaram de acontecer nos últimos dias, nas últimas 24 a 48 horas, que me parece estarem muito relacionados com o que ele tinha para dizer.
MH: Ora bem, Lavrov disse de fato precisamente o contrário daquilo que disseste que ele disse. Não é que os outros países estejam a sair da zona do dólar, é que o dólar está a expulsar outros países da zona do dólar. O processo começou em 1954 com o derrube do governo do Irã. Depois da queda do Xá, sacou as poupanças do Irã nos Estados Unidos. Mais recentemente, há um ou dois anos, apoderou-se de todas as poupanças da Venezuela, do seu de ouro no Banco de Inglaterra.
Mas ainda mais grave, no ano passado os Estados Unidos disseram – a Rússia recusou-se a vender o seu petróleo e gás a compradores americanos. Por conseguinte, estamos a sacar todo esse dinheiro no Ocidente, 300 bilhões de dólares. Estamos a sacá-lo porque queremos levar a Rússia à falência. A nossa intenção é falir a Rússia e dividi-la em cinco Estados para que nunca mais se torne um país militar forte, e especialmente para que não possa apoiar a China, que também queremos dividir em alguns Estados. Assim, agarrou o dinheiro da Rússia e ameaçou expulsar a Rússia, a China e outros países do sistema eletrônico de compensação bancária SWIFT para que os seus bancos não se pudessem relacionar-se com os Estados Unidos. E levantou uma cortina de ferro, não para conter a Rússia e a China ou o Irã, mas uma cortina de ferro à volta de toda a Europa para impedir a Europa e outros países de língua inglesa – Lavrov chama-lhes "os bilhão de ouro" – a população branca do mundo, em oposição à Rússia, que é agora considerada racial e etnicamente não branca, especialmente pelos nazistas ucranianos. Os EUA declararam guerra econômica e social contra todo o resto do mundo e estão a isolá-lo com as sanções a que se assistiu contra o Irã, Rússia – sanções crescentes contra a China por causa do TikTok.
A América disse: – Se a China desenvolver uma nova tecnologia nos Estados Unidos, insistimos que ela venda a sua tecnologia aos americanos. Temos de monopolizar toda a tecnologia de informação para que, agora que desindustrializamos a economia americana, possamos viver sem indústria simplesmente através de rendas monopolistas. Se controlarmos as patentes de tecnologia de informação, e patentes químicas, e as patentes de saúde para produtos farmacêuticos, então podemos simplesmente viver dos nossos direitos de patente como se fôssemos senhorios. E de fato, o aluguel em monopólio, o aluguel de patentes, e as rendas da TikTok são muito semelhantes aos aluguéis de terrenos. Este foi o objetivo de Adam Smith, John Stuart Mill e David Ricardo no século XIX, ao alertar contra a manutenção de uma economia rentista.
Por isso Lavrov considerou: – Bem, temos estado isolados. Cometemos um erro na forma como olhamos para o Ocidente. Apesar de a NATO ter continuado, apesar das promessas feitas em 1991 de que esta seria desmantelada se a Rússia desmantelasse as suas alianças militares. Pensávamos que tínhamos segurança no fato de estarmos a fornecer gás, petróleo e outras matérias-primas à Europa e que esta estava a tornar-se próspera como resultado dos seus laços econômicos conosco. E pensávamos que este ganho mútuo de comércio iria garantir que não haveria qualquer hostilidade.
E Lavrov disse: – Ficamos surpreendidos por ter ouvido na semana passada a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Baerbock, dizer que a liderança alemã considera mais importante apoiar a Ucrânia. Ela disse: – É mais importante apoiar o partido nazista ali, mais importante promover o governo ucraniano de direita, do que ter prosperidade europeia e alemã, ou o que os eleitores querem.
A Sra. Baerbock disse: – Não importa o que os eleitores querem. Estamos aqui para apoiar a Ucrânia.
Ela não esclareceu que tinha sido lançada e apoiada durante uma década por organizações não governamentais financeiras americanas que encontraram oportunistas como ela para promover a carreira de pessoas que dispostas a, uma vez em funções, representar a política externa americana em vez dos seus próprios eleitores.
Os Estados Unidos fizeram uma revolução colorida no topo, na Alemanha, Holanda, Inglaterra e França, essencialmente onde a política externa da Europa não está a representar os seus próprios interesses econômicos. A América disse apenas, – Estamos empenhados em apoiar uma guerra de (a que chamam) democracia (pelo que querem dizer oligarquia, incluindo o nazismo da Ucrânia) contra a autocracia.
Autocracia é qualquer país suficientemente forte para impedir o surgimento de uma oligarquia credora, tal como a China impediu a oligarquia credora.
Tal como Putin e a Rússia puderam identificar os cleptocratas que foram patrocinados pelos Estados Unidos nos anos 90 e dizer-lhes, – Bem, podem ficar com o dinheiro mas têm de apoiar políticas pró-russas, e não limitarem-se a vender o vosso petróleo a empresas americanas para o controlarem. O petróleo e os recursos naturais são empresas russas. Não vamos perder o nosso patrimônio nacional com isso.
Por isso Lavrov escreveu um artigo muito eloquente. Vou ler uma coisa que ele disse:
"Já não temos ilusões de convergência com a Europa, de sermos aceitos como parte da "casa comum europeia", ou de criar um "espaço comum" com a UE. Todas estas declarações feitas nas capitais europeias revelaram-se um mito e uma operação de bandeira falsa. Os últimos desenvolvimentos mostraram claramente que a rede ramificada de laços comerciais, econômicos e de investimento mutuamente benéficos entre a Rússia e a UE não constituía uma rede segura. A UE não pensou duas vezes em sacrificar a nossa cooperação energética, que era um pilar da sua prosperidade. Vimos que as elites europeias não têm independência e fazem sempre o que lhes é ordenado em Washington, mesmo que isso resulte em danos diretos para os seus próprios cidadãos".
Portanto, o que ele explicou neste artigo foi que o erro que Putin e os russos cometeram foi, penso eu, um legado do seu passado materialista marxista. Eles pensavam que a política de todos os países iria refletir os interesses econômicos dos seus países (aqui, o entrevistado opera uma série de simplificações da concepção marxista da política: desde o economicismo- desprezando a categoria de totalidade, central no marxismo- até, concretamente, não entender que, na era do capitalismo financeiro, a política e a sociedade ocidental foram capturadas pela ofensiva totalizante- econômica, política, ideológica, cultural- da fração financeira do grande capital, que toma a hegemonia do processo de contrarrevolução/ regressão civilizacional mundial, com rebatimentos óbvios na política dos países ocidentais, M.A.S).
Não podiam acreditar que a Europa e outros países apoiariam uma política que fosse diretamente contra os seus interesses econômicos, como a recusa de comprar petróleo e gás russo, o que significava acabar com toda a indústria siderúrgica alemã, e a indústria de vidro soprado, e a indústria de fertilizantes, todas elas exigindo importações de gás da Rússia. Por isso, os setores da economia alemã que fizeram da Alemanha a nação líder e dominante da União Europeia estão dizimados. A única escolha das empresas siderúrgicas europeias e de outras empresas é mudarem-se para os Estados Unidos.
Não se sabe o que vai acontecer à sua força de trabalho, mas obviamente vai haver aqui uma crise. E há políticas semelhantes na Holanda e em França. Estamos a ter todos estes países a não agirem no seu próprio interesse econômico.
Bem, onde é que fica a abordagem materialista à história quando se está a fazer algo assim? É uma surpresa. Lavrov disse:
"Os países de maioria global, onde vive cerca de 85 por cento da população mundial, não estão dispostos a tirar castanhas do fogo para os seus antigos estados-mãe coloniais".
Na semana passada houve um grande encontro entre os russos e a África. No próximo mês há uma grande cimeira de países africanos em São Petersburgo, na Rússia. Há países a serem expulsos do Império Americano pela política americana de tentar ter tudo-ou-nada.
Poder-se-á dizer que a política americana também não está realmente a ajudar a sua economia.
A América beneficiou imenso a nível internacional devido ao padrão do dólar. Todo o dinheiro gasto na construção de 780 bases militares em todo o mundo, injetou dólares em bancos centrais estrangeiros. Eles reciclam este dinheiro para os Estados Unidos, em grande parte comprando títulos do Tesouro e apenas o reenviando de volta.
A América imprimiu mais dinheiro do que aquele que alguma vez poderá pagar. Tal como um banco deve aos depositantes mais dinheiro do que pode pagar quando o valor das suas hipotecas e investimentos diminuem. Os Estados Unidos, agora desindustrializado, não tem forma de pagar a países estrangeiros o dinheiro que está a subir na sua própria moeda.
Por outras palavras, se os países dissessem, - Queremos levar as centenas de bilhões de dólares que investimos, queremos levá-los de volta para as nossas próprias moedas ou para o ouro ou para outra coisa qualquer.
A América não tem como pagar. E há um reconhecimento de que esta política de acumulação de dívidas não só impôs a deflação da dívida à economia americana, não só empurrou a economia americana para uma austeridade e depressão crônicas, como levou o mundo inteiro a afastar-se e a usar os seus benefícios econômicos para si próprio.
Penso que ontem a França anunciou que iria comprar gás e petróleo à China e pagar em yuans. Já há outros países que não fazem o seu comércio em dólares.
Não é que se estejam a retirar, é que os Estados Unidos os afastaram porque a China tem medo de receber mais dólares.
É preocupante que, desde que o Presidente Biden disse que estamos numa guerra de 20 a 30 anos contra a China para decidir quem vai governar o mundo, a democracia americana ou a autocracia chinesa, o que significa produção industrial eficiente versus desindustrialização, obviamente que a China pensa, – É melhor salvarmo-nos de ter o destino que a Rússia teve.
E isso que está a acontecer no mundo. Penso que foi Lavrov quem explicou isto mais claramente do que qualquer outra pessoa. Nos seus discursos e nos do Presidente Putin apenas se sente repugnância pelo Ocidente e eles estão realmente repugnados por terem sido levados a acreditar que a Europa iria agir no seu próprio interesse em vez de agir como uma colônia militar política e econômica dos Estados Unidos.
DH: Claro. E há muitos desenvolvimentos que provam isso. Falaste na França, mas há muitos outros, mesmo apenas nas últimas 24 a 48 horas para falar. Mas antes de chegarmos lá, podias falar talvez brevemente sobre a Europa como se desse um tiro no próprio pé, indo contra os seus próprios interesses econômicos, e a Rússia e muitos países agora apercebem-se disso. Mas, por outro lado, há muitas ilações, o que iremos ouvir é que a Wall Street, os financiadores, o capital financeiro, beneficiam realmente da guerra. Será esse o caso quando se trata deste movimento cada vez mais agressivo de afastar países como a Rússia e a China? Quem beneficia? O capital financeiro beneficia, e como?
MH: Acho que não se pode dizer que o capital financeiro beneficia, é precisamente o contrário que está a acontecer. Pode ser que os bancos que emprestam dinheiro ao grande complexo industrial militar beneficiem de fato. Mas o capital financeiro beneficiaria muito mais com o comércio mundial ativo. Tradicionalmente, os bancos, desde a Idade Média, têm feito uma parte substancial dos seus ganhos no financiamento do comércio internacional, através de cobranças a curto prazo pendentes no crédito comercial. É preciso que os bancos desempenhem um papel quando se importa de um país, para garantir que o dinheiro vai lá estar e que o dinheiro será pago quando a exportação for efetivamente entregue. Os bancos ganham dinheiro financiando investimentos internacionais. Portanto, se houver uma mudança para a autosuficiência isso não ajuda os bancos.
Depois da Primeira Guerra Mundial, quando o governo dos EUA insistiu em dívidas interaliados ao ponto de quebrar a Europa e manter o fluxo da dívida apenas baixando as taxas de juro e criando uma bolha na bolsa de valores que rebentou em 1929 – isso não ajudou a financiar. Portanto, as finanças não beneficiam realmente com a guerra, e esta guerra não está a ser conduzida pelo setor financeiro. É liderada pelos neocons que têm uma motivação completamente diferente para a guerra. É um ódio real e visceral à Rússia. Não é um ódio econômico, é um ódio étnico à Rússia, e apenas um ódio emocional à Rússia, seguido de um ódio racial à China. Isso sempre foi tão americano como a torta de maçã.
Pensar-se-ia que haveria alguns interesses financeiros que se opõem à guerra. Mas o que é surpreendente é que o movimento antiguerra nos Estados Unidos não está a ser liderado pela esquerda. Quem é que está contra a guerra? Principalmente os libertários, os republicanos, Donald Trump – onde está a esquerda? Não em Bernie Sanders. Ele apoia Biden e a Ucrânia. Não no Partido Democrata. A questão é se Trump e outros republicanos vão tentar impor nas eleições de 2024 precisamente uma das seguintes ideias: – Bem, se é pela prosperidade americana, incluindo o emprego para os assalariados americanos, temos de acabar com a economia de guerra.
Considerando que o Partido Democrata disse, – Vale a pena cortar na Segurança Social. Vale a pena cortar no apoio médico, no Medicaid e nas despesas sociais para combater a guerra. As despesas militares são sacrossantas e a guerra é essencialmente aquilo de que trata o nosso Departamento de Estado, a nossa CIA, a Reserva Federal, e Miss Yellen.
Isto vai ser muito interessante. Pela primeira vez penso que não é a ala direita que está a favor da guerra. Embora se olharmos para a Primeira Guerra Mundial, foram os grupos de paz e a esquerda os primeiros em quase todos os países a aplaudir a guerra, exceto Eugene Debs e os socialistas na América. E Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo na Alemanha (esqueceu Lenin e os Bolcheviques, na Rússia, M.A.S.). Os partidos socialdemocratas eram todos a favor da guerra e hoje em dia repetem a dose. Quem diria que um partido que se intitula o Partido Verde na Alemanha seria o principal partido beligerante a favor da guerra e que os partidos socialdemocratas na Europa são todos a favor da guerra.
Por isso, já não estamos num reflexo de interesses econômicos, mas sim de interesses políticos. Não sei se lhe chamamos guerra étnica, ou outra coisa, mas seja o que for, é um ódio nacional à Rússia, à China – talvez seja apenas do "outro". Talvez seja um qualquer país estrangeiro que os Estados Unidos não controlem e que olhem como um inimigo. E se não for capaz de o explorar, vê isso como uma ameaça à sua própria identidade.
A entrevista, no original e completa, encontra-se em resistir.info