Um colégio chamado Canadá
* Flávio Viegas Amoreira
Li, numa sentada, o mais novo livro do sociólogo Fernando Henrique Cardoso: ´´Um intelectual na política´´, suas memórias mais afetivas que políticas, por isso não remeto ao termo óbvio de ex-presidente.
É tocante o tanto dedicado aos colégios do Rio e São Paulo em que FHC estudou e da dimensão que dá aos fundamentos antes da cátedra.
Recomendo como percurso sociocultural do Brasil coincidentes aos 90 anos do estadista lastreado em seus anos de formação, o substrato emotivo e ético tão chegados a literatura.
Lembrai-vos do magistral ´´Ateneu´´, de Raul Pompéia, que coloco à altura do “Retrato do artista quando jovem´´, de Joyce, ou ´´O jovem Torless´´, de Robert Musil, sem medo de exagero.
Em teoria literária existe um termo daqueles imensos típicos do alemão: ´´Bildubgsroman´´, não se assustem: é simplesmente o romance ou novela que contam infância e adolescência do protagonista.
Prefiro o nosso ´´anos de formação´´ ou o termo de Gorki: ´´Minhas universidades´´ que vão além do curso superior: os livros, filmes, pessoas que fizeram sua cabeça antes do amadurecer.
O espaço entre meninice e primeira juventude não costuma ser de lembranças felizes pelo tanto que supunhamos e pelo pouco do excesso de sonhos que realizamos. Sei que são galhos que crescem prá dentro da gente, dourados fazendo luz ao que não era ilusão, e fincam raízes sólidas na memória.
Somos na velhice o que deitou sementes desse arbusto de experiência e reminiscências. Já quase antológica a lembrança dos primeiros mestres, das antigas professoras, os colegas que vão esmaecendo no que recordamos: o que fica são flashes de cacos que vamos ajuntando.
Lembrança é labirinto, memória é um gênero literário, um romance que reinventamos na cabeça da gente, nunca é o que foi, somos reflexos do que imaginamos. O que de mais forte ainda ecoa quando revisitamos no que somos tentando desatar o novelo que éramos: tinha um pátio, o burburinho do recreio, os corredores frios de mármore, a disposição da sala de aula, a figura inesquecível de um punhado de colegas e professores que nos marcaram e permanecem em voz, semblante, frase ou pensamento determinante.
Meu espaço físico de memória segue altaneiro prédio art-decó e fez 87 anos nesse agosto santista, entre tantos prédios que aparentam-lhe fazer sombra ele irrompe sobranceiro: o bom e velho Colégio Canadá, templo da educação e fraternidade para tantos que se foram e nós que permanecemos, mantendo a chama que não cessa...
Quando por ele passo e não muito ultimamente, me persigno em pensamento feito quem faz reverência ao tempo e ao milagre diário de sobrevivermos. E nós que tanto já vivemos ditadura, redemocratização, a queda do muro e o 11 de setembro, mudança de século, o surgimento da internet, duas epidemias e a resistência a nossos tempos tão estranhos...
O cenário ainda persiste e ótimo que tombado em meio a tanta verticalização, mas como não recorrer ao lindo poema de Bandeira: ´´Onde estão eles? Estão todos dormindo/estão todos deitados/dormindo profundamente... ´´Os professores Itagiba, Ada, Sylvio Andraus, Frenor, Facundo, Maria Caruso, o diretor Edésio, os bedéis onde estão? onde Cabral, Dona Glorinha Monforte, onde Lidioneta, onde Abel, onde estão todos? No bioma preservado de nosso ´rememoramento´. Tudo isso me volta, nosso amor de ontem como canção de Burt Bacharach...
* Flávio Viegas Amoreira é escritor, poeta, contista, romancista, dramaturgo e jornalista. Nascido em Santos, em 1965, atua como agitador cultural em São Paulo, Rio de Janeiro e Litoral Paulista, em projetos de discussão de temas ligados a artes de vanguarda, saraus poéticos e oficinas de criação literária. Já lançou 14 livros.
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