O DIA EM QUE A TV ME SALVOU
Por Marcio Aurelio Soares*
Não sou artista, mas não é exagero dizer que a televisão tenha me ajudado muito. Estávamos nos idos de 2005. Um casal de amigos muito querido, assumiu a direção de um canal de televisão na Vivax. Lembram da Vivax? Faz 20 anos isso. Foi a primeira TV a cabo em Santos, precursora do Multicanal.
Por lei, a TV fechada tem – ou teria – que oferecer acesso gratuito à produção local, com programação de conteúdo regional. Sempre gostei da área de comunicação, mas nunca tinha me ocorrido a ideia de apresentar um programa de TV. Mentira, tinha sim. Mas isso lá no fundo de mim. Antes disso, havia cogitado fazer um talk show, no estilo do Jô Soares, que fazia muito sucesso. Quanta pretensão!, pensava em seguida.
De qualquer forma, sempre fui muito ousado. Cheguei até a me reunir com um diretor de TV aberta local, que me propôs um roteiro. No entanto, o projeto não foi adiante por falta de patrocínio. E eu, que já estava me sentindo artista, lamentei.
Até que chegou 2005. Sem saberem dos meus sonhos artísticos, meus amigos me convidaram para apresentar um programa sobre saúde, que resolvemos chamar de "Cuide-se Bem", homônimo da música de Guilherme Arantes, que virou tema de abertura. Guilherme, amigo do meu amigo, liberou a música para veiculação sem custo.
Fiz o programa por pouco mais de um ano, um misto de entrevistas em estúdio e matérias gravadas em externas. Mas não é disso que quero falar.
Com o tempo, fui convidado para apresentar outro programa, esse sim, um talk show. Não posso dizer que éramos líderes de audiência, mas os poucos que assistiam, gostavam. Assim, me aventurei em outro projeto, no qual eu recebia meus convidados para um lauto café da manhã oferecido pelo Mendes Plaza Hotel. Tudo era definido por mim, desde a produção até a escolha dos entrevistados.
Não sei quantas entrevistas fiz. Mas lembro de uma, em especial, que me motiva a escrever este relato. Ela, de certa forma, me salvou.
A ENTREVISTA QUE MUDOU TUDO
Dona Edith Gonçalves era uma figura importante da sociedade santista, a primeira moradora do casarão da Av. Bartolomeu de Gusmão, hoje tombado pelo patrimônio histórico e sede da Pinacoteca Benedito Calixto, em Santos.
Dona Edith era apaixonada pela obra literária do médico Martins Fontes, auxiliar do sanitarista Oswaldo Cruz, com atuação importante no combate à gripe espanhola na cidade e na fundação do serviço de tisiologia – tratamento da tuberculose –, existente até hoje.
Na literatura, Martins Fontes é considerado um dos expoentes da poesia parnasiana no Brasil. O parnasianismo foi um movimento literário que surgiu em contraposição ao romantismo, caracterizado por uma linguagem clássica e rebuscada, temas históricos, busca da perfeição estética, rigor métrico e impessoalidade.
Conta-se que o médico-poeta costumava oferecer cravos vermelhos a seus pacientes e sempre usava um na lapela do terno. Por isso, Dona Edith mantinha o hábito de deixar um cravo no monumento do poeta, na orla da praia do Boqueirão.
Era, sem dúvida, uma ótima personalidade para ser entrevistada.
O tema era denso; se eu quisesse fazer uma boa entrevista, precisava estudar. E foi isso que fiz. Memorizei, inclusive, um dos sonetos de Martins Fontes, "Como é bom ser bom":
Tu, que vês tudo pelo coração,
Que perdoas e esqueces facilmente,
E és, para todos, sempre complacente,
Bendito sejas, venturoso irmão.
Possuis a graça como inspiração,
Amas, divides, dás, vives contente,
E a bondade que espalhas, não se sente,
Tão natural é a tua compaixão.
Como o pássaro tem maviosidade,
Tua voz, a cantar, no mesmo tom,
Alivia, consola e persuade.
E assim, tal qual a flor contém o dom
De concentrar no aroma a suavidade,
Da mesma forma, tu nasceste bom.
A entrevista foi um sucesso. As palmas foram poucas, porém sinceras. Dona Edith adorou.
O DESTINO ME SORRIU
Alguns meses depois, me inscrevi em um concurso público para o cargo de médico servidor federal. Cento e cinquenta candidatos por vaga.
E o que caiu na prova de português? Martins Fontes e a poesia parnasiana!
Tirei dez. Fui aprovado. Bingo!
*Médico